sábado, 13 de dezembro de 2008

É preciso aprender a brincar!

Eu disse "caixa de ferramentas" e "caixa de brinquedos". Santo Agostinho disse "ordem da utilidade" e "ordem da fruição". Freud disse "princípio da realidade" e "princípio do prazer". Martin Buber disse "o mundo do 'isso'" e "o mundo do 'tu'". É tudo a mesma coisa.

Mas quem disse primeiro foram as Sagradas Escrituras. Elas contam que Deus estava infeliz. O vazio em que vivia lhe dava tédio. Por isso teve um sonho. Sonhou com um jardim _não há nada que dê mais alegria que um jardim. E decidiu plantar um jardim para ficar alegre.

Começou nos confins do vazio, criando as grandes estrelas, o Sol, a Lua, e foi afunilando, afunilando, até chegar a um lugar bem pequeno, onde plantou o seu sonho: o Paraíso. Fontes, árvores frutíferas, flores, pássaros, borboletas, animais de todo tipo e até um vento fresco e perfumado que soprava nas tardes.

Cecília Meireles resumiu essa estória num minúsculo poema enorme:

"No mistério do Sem-Fim equilibra-se um planeta.
No planeta, um jardim.
No jardim, um canteiro.
E no canteiro, o dia inteiro
Entre o mistério do Sem-Fim e o planeta
A asa de uma borboleta...".

Era o jardim das delícias, destino dos homens, destino do Universo, destino de Deus! O Paraíso era melhor que o céu. Prova disse é que Deus passeava pelo jardim ao vento fresco da tarde... Terminado o seu trabalho de seis dias, Deus parou de trabalhar. Entregou-se então àquilo para que o trabalho havia sido feito: uma deliciosa vagabundagem contemplativa. Os olhos olharam para o jardim e experimentam o êxtase da beleza! "E viu Deus que era muito bom..." Os olhos de Deus brincavam com o jardim. Nada havia para ser feito. Tudo para ser gozado.

Nos limites do meu conhecimento, Jacob Boehme (1575-1624) foi o único teólogo que entendeu isso. Herética e eroticamente, ele disse que a única coisa que Deus faz é brincar e que o Paraíso era um lugar para que os homens brincassem uns com os outros e com as coisas ao seu redor _homem e mulher, para que um brincasse com o corpo do outro. Perderam o Paraíso quando desaprenderam a arte de brincar.

Os poemas sagrados colocam as coisas na ordem certa. A semana bíblica começa com os dias de trabalho e termina com o dia de gozo. A igreja alterou essa ordem. Primeiro o dia da contemplação: o corpo descansa para trabalhar melhor...

A forma como as ferramentas são aprendidas é muito simples. Tudo começa com o sonho. O corpo sonha. Pois, como Freud percebeu, ele é movido pelo "princípio do prazer". O sonho é o meu pequeno paraíso. Se fôssemos feiticeiros, se tivéssemos o poder mágico dos deuses, bastaria dizer o sonho em voz alta para que ele se realizasse.

Mas somos fracos seres humanos e temos necessidade de pensar. O sonho dá ordens à inteligência: "Pense, invente as ferramentas de que necessito para realizar o meu sonho". Aí a inteligência pensa. Se o sonho não existe, é inútil dar ordens à inteligência. Ela não obedece.

Veio-me a idéia de que a inteligência muito se parece com o pênis. Não se assuste: o mundo está cheio das analogias mais estranhas. Pois o que é o pênis? É um órgão que, no seu estado normal, é um apêndice ridículo, flácido, que realiza funções excretoras automáticas, que não demandam grandes reflexões. Mas, se provocado pelo desejo, ele passa por curiosas metamorfoses hidráulicas que lhe dão a capacidade de ter prazer, de dar prazer e de criar vida. Se não há desejo, é inútil que a cabeça lhe dê ordens.

Assim também é a inteligência. No cotidiano, ela se encontra num estado flácido que é mais do que suficiente para a realização das tarefas rotineiras. Quando, entretanto, é provocada pelo desejo, ela cresce e se dispõe a fazer coisas ditas impossíveis. Assim viu Fernando Pessoa, que disse: "Sinto uma erecção na alma". Uma inteligência flácida é uma inteligência sem desejo.

Meu amigo Eduardo Chaves observou que, ao contrário do que anuncia o best-seller "Inteligência Emocional", a verdade é o oposto. Não há inteligência emocional. A inteligência jamais procura a emoção. É a emoção que procura a inteligência. É a emoção que deseja ser eficaz para realizar o sonho. Mas a capacidade de brincar também precisa ser aprendida. E ela tem a ver com a capacidade do corpo de ser erotizado pelas coisas à sua volta, de sentir prazer nelas. Nossos sentidos _a visão, a audição, o olfato, o tato, o paladar_ são órgãos de fazer amor com o mundo, de ter prazer nele.

Mas não basta ter olhos, nariz, ouvidos, língua, pele. Os sentidos, no seu estado natural, podem sofrer daquela flacidez sobre que falei... Roland Barthes sugeriu, então, que a educação dos sentidos fosse semelhante ao "Kama Sutra", o ensino das várias posições possíveis de fazer amor com o mundo. Mas isso, é claro, exige que os professores sejam mestres na dita arte...

Rubem Alves

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Plante o seu jardim, não espere por flores

"Um dia você aprende que...

Não importa em quantos pedaços
seu coração foi partido, o mundo
não pára para que você o conserte.

Aprenda que o tempo não é algo
que possa voltar para trás.

Portanto, plante seu jardim
e decore sua alma, ao invés de
esperar que alguém lhe traga flores.

E você aprende que realmente
pode suportar, que realmente é
forte e que pode ir muito mais
longe depois de pensar que não se
pode mais.

E que realmente a vida tem
valor e que você tem valor diante da vida.

Nossas vidas são traidoras e
nos fazem perder o bem que
poderíamos conquistar se não
fosse o medo de tentar"...

(WILLIAM SHAKESPEARE)

domingo, 16 de novembro de 2008

A Solidão e Sua Porta

Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
E quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha)
Quando pelo desuso d a navalha
A barba livremente caminhar e até Deus em silêncio
se afastar deixando-te sozinho na batalha

Arquitetar na sombra a despedida
Deste mundo que te foi contraditório
Lembra-te que afinal te resta a vida

Com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída
Entrar no acaso e amar o transitório.

Carlos Pena Filho.

Soneto a quatro mãos


Tudo de amor que existe em mim foi dado
Tudo que fala de amor em mim foi dito
Do nada em mim o amor fez o infinito
Que por muito tornou-me escravizado

Tão pródigo de amor fiquei coitado
Tão fácil para amar fiquei proscrito
Cada voto que fiz ergueu-se em grito
Contra meu próprio dar demasiado

Tenho dado de amor mais que coubesse
Nesse meu pobre coração humano
Desse eterno amor meu,antes não desse

Pois se por tanto dar me fiz engano
Melhor fora que desse e recebesse
Para viver da vida o amor sem dano

Vinicius de Moraes e Paulo Mendes Campos

Como nasce a ética

Como nasce a ética?

A base de toda construção ética, cujo campo é a prática, se baseia nesta pressuposição: a ética surge quando o outro emerge diante de nós.

O outro pode ser a pessoa mesma que se volta sobre si mesma, analisa a consciência, capta os apelos que nela se manifestam (ódio, compaixão, solidariedade, vontade de dominação ou de cooperação, sentido de responsabilidade), se dá conta de seus atos e das consequências que deles se derivam. O outro pode ser aquele que está à sua frente, homem ou mulher, criança, trabalhador, empresário, portador de HIV, negro etc. O outro podem ser os outros como uma comunidade, uma classe social, a sociedade como um todo, ou, numa perspectiva mais glabal, a natureza, o planeta Terra como Gaia e, em último termo, Deus.

Diante do outro ninguém pode ficar indiferente. Tem que tomar posição. Mesmo não tomando posição, silenciando e mostrando-se indiferente, já é uma posição.

A ética surge a partir do modo como se estabelece a relação com estes diferentes tipos de outro. Pode fechar-se ou abrir-se ao outro, pode querer dominar o outro, pode entrar numa aliança com ele, pode negar o outro como alteridade, não respeitando-o mas incorporando-o, submetendo-o ou simplesmente destruindo-o.

De todas as formas, o outro representa uma pro-posta que reclama uma res-posta. Deste confronto entre pro-posta e res-posta surge a re-sponsa-bilidade. Ao assumir minha responsabilidade ou demitir-me dela, me faço um ser ético. Dou-me conta da consequência de meus atos. Eles podem ser bons ou ruins para o outro e para mim.

O outro é determinante. Sem passar pelo outro (que posso ser eu mesmo), toda ética é anti-etica.

Não sem razão todas as religiões e tradições éticas, do Ocidente e do Oriente, estabelecem como máxima fundadora do discurso ético: “não faça ao outro o que não queres que te façam a ti”. Ou positivamente: “faça ao outro o que que gostarias que te fizessem a ti”. É a regra áurea.

E como o outro mais outro é o pobre e o excluido, o imperativo ético mínimo e urgente, prévio a qualquer outro, é esse, bem formulado por Enrique Dussel, argentino e filósofo da libertação:

“Liberta o pobre e inclua o excluido”.

Apliquemos isso à nossa sociedade. Ela não é uma sociedade qualquer. Precisa ser qualificada: é uma sociedade, predominantemente, estruturada no modo de produção capitalista, quer dizer, privilegia o capital sobre o trabalho, privatiza os meios de produção e define de forma desigual o acesso aos bens necessários à vida: primeiro quem detém os meios de produção, depois os demais, deixando até de fora quem não tem força social de pressão. São os excluidos, hoje perfazendo, as grandes maiorias da humanidade, cujas vidas não têm sustentabilidade, vivem abaixo do nivel de pobreza e, em consequência, morrem antes do tempo.

Esse tipo de sociedade valoriza mais a competição que a cooperação e magnifica o indivíduo que constrói sozinho sua vida, seu benestar e seu destino e não a sociedade e a comunidade dentro das quais, concretamente, o indivíduo sempre se encontra.

A sociedade neo-liberal levou até as ultimas consequências esta visão. Por isso, os governos administram desigualmente os bens públicos, privatizam, planejam políticas públicas e sociais pobres para os pobres e ricas para os ricos e poderosos seja indivíduos, empresas ou classes; atendem primeiramente a seus interesses, garantem seu tipo de consumo e são atentos às suas expectativas. Não as incentivam a olhar para os lados onde estão os outros e assim fazer e refazer continuamente a solidariedade social.

Tais governos não realizam a definição mínima de política que é a busca comum do bem comum e o cuidado das coisas do povo. Por isso são anti-éticos e fautores de atitudes coletivas em contradição com os apelos éticos. Porque não se orientam pelo outro que é o princípio fundador da ética básica.

A sociedade mundial hoje globalizada nesse modelo anti-etico promove a globalização como homogeneização: um só pensamento, um só modo de produção (o capitalista), um só tipo de mercado, uma só tipo de religião, o cristianismo, um só tipo de música (rock), um só tipo de comida (fast food), um só tipo de excutivo, uma só tipo de educação, um só tipo de lingua, o inglês etc.

Com a negação da alteridade ou o seu submetimento ou a sua destruição, a sociedade-mundo atual se coloca em contradição com ética. Essa atitude perversa tem como consequência a má qualidade de vida atual em todos os âmbitos sociais, culturais e ambientais.

Essa atitude é tanto mais grave pelo fato de atingir o substrato fisico-quimico que possibilita a biosfera e o projeto planetário humano. Não se respeita a Terra como o grande outro e como subjetividade, chamada Gaia. Reduz esse super-organismo vivo, a um baú inerte de recursos naturais, entregues ao bel prazer humano. Violenta a alteridade dos eco-sistemas, depredando seus recursos, ameaçando as espécies, envenenando os ares, poluindo os solos, contaminando as águas, como se esses representantes da comunidade terrenal não tivessem uma história mais ancestral que a nossa e nós não dependessemos deles para a nossa propria vida.

O preceito etico-ecológico urgente hoje é este:

“Aja de tal maneira que tuas ações não sejam destrutivas da Casa Comum, a Terra, e de tudo no que nela vive e co-existe conosco”.

Ou: “Aja de tal maneira que tua ação seja benfazeja a todos os seres, especialmente aos vivos”. Ou :“Aja de tal meneira que permitas que todas as coisas possam continuar a ser, a se reproduzir e a continuar a evoluir conosco”.

Ou então: “Use e consuma o que precisas com responsabilidade para que as coisas posssam continuar a existir, atendam nossas necessidades e as das gerações futuras, de todos os demais seres vivos, que tambem junto conosco têm direito de consumir e de viver”. Precisamos consumir para viver. Mas devemos consumir com responsabilidade e com solidariedade para com os outros, respeitando as coisas em sua alteridade e entrando em comunhão com elas, pois são nossos companheiros e companheiras na imensa aventura terrenal e cósmica.

Como se depreende, não é essa a ética que predomina. A ética vigente é predatória, irresponsável, individualista, perversa para com os outros, tratados com dissimetria e injustiça nos processos produção, de distrubuição e de compensação. Ela é cruel e sem piedade para a grande maioria dos seres vivos humanos e não humanos. Por fim, ela ameaça o futuro da biosfera e do projeto humano.

Para superarmos essa ética altamente destrutiva do futuro da humanidade e do planeta Terra devemos partir de outra ótica. Só uma nova ótica pode gerar uma nova ética.

A nova ótica que está se difundindo um pouco por todas as partes arranca de outra compreensão da relidade, fundada no conjunto de saberes que perfazem as ciências da Terra.

A tese de base desta ótica afirma que a lei suprema do universo é a da inter-dependência de todos com todos. Tudo está relacionado com tudo em todos os pontos e em todos momentos. Ninguem vive fora da relação. Mesmo a lei de Darwin do triunfo do mais forte se inscreve dentro dessa pan-relacionadade e solidariedade universal. Por causa das inter-retro-relações de todos com todos é que se garantiu a diversidade em todos os campos, particularmente, a biodiversidade e o fatao de todos podermos chegar ao ponto que atualmente chegamos.

Sobrevivemos graças às bilhões de células que inter-agem entre si em nosso corpo e das bilhões de bacterias, mitocôndrias e outros corpos que vivem dentro das células, células que fomam organismos, corpos, sistemas, interconcectados com o meio natural e cósmico.

Essa cooperação de todos com todos funda uma nova ótica que, por sua vez, origina uma nova ética de con-vivência, cooperação, sinergia, solidariedade e comunhão de todos com todos e com a Terra, com a natureza e com seus ecosistemas. A partir desta ética nos contemos, nos submetemos a restrições e valorizamos as renúncias em função dos outros e do todo.

Ou assumimos tal ética e sobre ela fundamos um novo pacto socio-cósmico ou corremos o risco de ir ao encontro do pior, ou de fazermos uma travessia altamente destruidora da vida e da humanidade, capaz de dizimar um número incontável de seres vivos.

A partir dos sobreviventes deste eventual colapso, aprender-se-ão as amargas mas benfazejas lições para uma nova história. Com os valores fundados na cooperação e na solidariedade inaugurar-se-á um outro tipo de ser humano, com outro tipo de civilização e com outro tipo de destino planetário da humanidade. O ser humano, indivíduo social aprenderá a entender-se como sendo a própria Terra que chegou ao momento de sentir, pensar, amar, venerar e se responsabilizar pelo futuro comum dos humanos, de todos os demais seres e da própria Terra, pátria e mátria de todos.

Uma nova história começará, seguramente mais cooperativa, humanitária, ética e espiritual.

Leonardo Boff