terça-feira, 14 de julho de 2009

Follow your bliss. Find where it is, and don't be afraid to follow it.

Joseph Campbell
"...a vida, Senhor Visconde, é um pisca - pisca.
A gente nasce, isto é, começa a piscar.
Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos - viver é isso.
É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais.
A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso.Um rosário de piscadas.
Cada pisco é um dia.
pisca e mama;
pisca e anda;
pisca e brinca;
pisca e estuda;
pisca e ama;
pisca e cria filhos;
pisca e geme os reumatismos;
por fim, pisca pela última vez e morre.
- E depois que morre - perguntou o Visconde.
- Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?"

Monteiro Lobato.

domingo, 12 de julho de 2009

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?

Ferreira Gullar

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Escutar a voz do silêncio. Música uma arte menor?

É comum mencionar Kant como exemplo de falta de sensibilidade musical. Ele considerava a música uma arte inferior às outras, como a pintura, por exemplo, porque o valor da arte está no alimento intelectual que instiga, e a música, que simplesmente joga com sensações, ocupa o lugar mais baixo entre as artes porque "vai de certas sensações a ideias indefinidas, enquanto as artes figurativas vão de ideias determinadas a sensações. As outras manifestações artísticas provocam impressões duradouras, a música apenas deixa impressões passageiras".

São ideias bem discutíveis, mas Kant acrescentava: "Além disso, na música há ausência de urbanidade, devido à própria natureza dos instrumentos que propagam a sua ação além do que os vizinhos desejam; ela, de certa forma, abre passagem e vem perturbar a liberdade dos que não gostam de reuniões musicais, um inconveniente que as outras artes não têm, pois falam para a visão, para evitar contemplá-las basta virar os olhos em outra direção". A música quase poderia ser comparada aos cheiros, que se propagam de longe. "Quem tira do seu bolso um lenço perfumado, embora isso já tenha passado de moda, não consulta os demais e lhes impõe algo que não podem evitar, já que têm que respirar" (Crítica do juízo, 53).

Desprezar a estética da música porque incomoda os vizinhos é como negar o valor de Aída quando se apresenta na Arena de Verona e obriga os moradores da redondeza a ouvi-la. Contudo, eu, que moro em uma região de Milão onde por qualquer festividade são organizados shows de rock que duram até a madrugada, começo a pensar que Kant tinha uma parcela de razão, com o perdão de Giuseppe Verdi.

É normal que as pessoas não leiam imediatamente as publicações que lhe são enviadas porque não é possível ler tudo ao mesmo tempo (lemos a Ilíada quase três mil anos depois de ter sido escrita), por isso li com alguns meses de atraso o número 43 da Revista Nuovi argomenti, que traz uma espécie de diário do poeta Valerio Magrelli. Em certo ponto, Magrelli cita positivamente o trecho de Kant porque, segundo ele, existe a música que se escolhe e a que os outros nos impõem: "Trata-se de dois fenômenos antiestéticos. O primeiro representa um dos alimentos mais requintados que a espécie humana já recebeu, enquanto o outro é um simples crime. Um é uma dádiva que escolhemos, o outro é um castigo que recebemos". E no início do seu diário, Magrelli escreve que existem "dois materiais cujo abuso está destruindo a ecologia do planeta: plástico e música".

Com relação ao plástico não necessitamos de exemplos; embora o plástico tenha um ponto mais negativo do que a música, porque, como se sabe, os sons são voláteis e se dispersam pelo ar, mas o plástico é um material que permanece ao longo dos séculos.

Com relação à música, basta pensar até que ponto ela nos persegue nos aeroportos, nos bares e restaurantes, nos elevadores, no consultório do fisioterapeuta com um horroroso estilo New Age, nos toques dos celulares que ecoam nos trens a todo o momento Para Elisa ou a Sinfonia 40 de Mozart (que também acompanha insistentemente qualquer evento da televisão) e, pior ainda, a música nos assusta quando, sem ouvi-la, a adivinhamos nos ouvidos obcecados e atordoados dos descerebrados que passam do nosso lado com um fone enfiado no ouvido, incapazes de caminhar, pensar e respirar sem esse tormento como anjo da guarda.

Há décadas decidíamos ouvir música e ligávamos o rádio (operação que requeria um esforço manual), ou escolhíamos um disco (operação que também requeria uma reflexão intelectual e uma escolha de opinião), ou nos arrumávamos bem e íamos a um concerto, no qual exercíamos a nossa capacidade de discernimento entre uma boa e uma modesta execução, ou podíamos decidir que amávamos a Bach e odiávamos a Scriabin.

Agora, multidões de jovenzinhas com o umbigo de fora e rapazinhos de cabelos puxados roubam música através do computador para trocá-la entre si e ouvi-la o dia todo, e quando vão ao show ou à discoteca não é para desfrutar, mas para atordoar-se e, esquecendo as sutilezas do pedal, absorvem mais ruído do que música.É lógico que no trem muitos adultos embrutecidos também usam fones, incapazes que são de ler um jornal ou de olhar a paisagem.

Se a Mona Lisa estivesse em todos os cartazes de publicidade, se tornaria feia e obsessiva. Mas (e então Kant tinha razão) o nosso intelecto perceberia e reclamaríamos. No entanto, com a música não: estamos nela como em um banho amniótico. Como recuperar o dom da surdez?

Umberto Eco.